23 de jan. de 2015

Cheiro de povo.

"Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo" 

João Baptista Figueiredo


Desculpa, moço
se o cheiro que
emana de mim
lhe desagrada
o seu tão fino
nariz:

é que eu tava
trabalhando

é que eu tava
descansando

é que eu tava
ali do lado
fazendo nada
de errado
e a polícia
chegou em mim.

Daí que é assim:

a gente sua,
a gente se esforça,
a gente às vezes
é o cavalo
e às vezes
é a carroça.

Então que não
dá pra disfarçar
isso que pode
ser fedor
só com perfume
barato.

A gente fede,
moço,
eu sei.

Mas não é cheiro
de rato, não:

a gente emana
muito de sonho
perdido,
muito de sonho
estragado,
muito de noite
acordada,
muito de dia
nublado.

E esse cheiro
que te faz
torcer o rosto,
moço,
não é por eu ser
preto,
não é por eu ser
branco, se
às vezes sou
angolano
e às vezes
japonês
- mas o meu cheiro,
moço,
não tem a ver com
etnia,
não se explica
na geografia
ou não sei:

talvez se a gente
levar em conta
essa nossa necessidade
de sempre pagar mais
caro
qual seja for o valor
da compra.

Não dá pra ter cheiro
de flor se a gente
vive sendo espinho;

não dá muito pra
respirar
quando se
vive apertado
e sozinho.

Daí que o seu
problema com
o meu cheiro
é talvez um problema
unicamente seu:

porque isso que exalo
é cheiro de gente,
de povo.

Me desculpa se até
aqui não disse
nada de novo,
mas preciso ir
pra labuta
novamente.

Só um recado
que talvez lhe
sirva:

a gente fede desse jeito
é porque a gente luta:

todo dia de manhã
até quase a noitinha,
virando a madrugada
quase até de manhãzinha.

E se ouvir dizer de nós,
que andamos perfumados,
é que a luta de que se fala
acabou virando de lado:

foi pro lado dos livros,
da teoria importada,
dos diálogos compridos,
da verdade imaginada.

Por isso, moço,
lhe digo
que esse cheiro
de povo
(alguns dizem de mendigo),
é original e é nosso,
tão américo-latino
que não espanto se o moço
não quiser sentar comigo
pra escutar meu endosso,
pra aguentar esse osso,
esse meu cheiro de poço,
esse meu cheiro divino.

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